A CARNIÇA
Tu recordas, querida, aquilo que estou vendo
Ainda pela lembrança?
Na volta de uma estrada, um cadáver horrendo
Que sobre as pedras descansa.
As pernas para o ar, como uma fêmea ardente,
E que exale e que difunda
O veneno, ele expõe, cínico e indiferente,
Sua carne nauseabunda.
Nessa putrefacção, brilhante, o Sol luzia
Para cozê-la devagar,
A fim de devolver à natureza, um dia,
O que ela pôde juntar.
E contemplava o céu o fúnebre despojo
Abrir-se como uma flor.
Quem lhe estivesse ao pé vomitava de nojo
Ao lhe sentir o fedor.
Moscas vinham cheirar, nesse pútrido ventre,
As viscosas multidões
De vermes a vagar, negras e aquosas, entre
As fezes das podridões.
E tudo isto descia, e tudo isto subia,
E avançava borbulhando;
Dir-se-ia que um sopro ao corpo revivia,
Cheio, se multiplicando.
E esse pequeno mundo estranho produzia
Como os ventos um rumor,
Que lembra a água corrente, e lembra o grão que chia
Na joeira do semeador.
Sua forma esbateu-se em figura imprecisa
Como um debuxo que lança
No painel o pintor, e o esquece, e após precisa
Terminá-lo de lembrança.
Por detrás de um rochedo, olhos de cão faminto
Nos olhavam irritados,
Espreitando a ocasião de saciar o instinto
Em mais dois ou três bocados.
Mas um dia serás igual à sordideza
Dessa horrenda podridão,
Luz dos meus olhos, Sol da minha natureza,
Minha trágica paixão.
Ouve, serás assim, rainha das amadas,
Quando, sem vida, tu fores
Apodrecer teu corpo esbelto entre as ossadas,
Sob a erva e sob as flores.
Então, querida, diz aos vermes do montouro,
Que aos beijos te comerão,
Que eu guardei para mim o que havia de puro
Do teu ser em corrupção!
Charles Pierre Baudelaire.
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