17 de agosto de 2006

SONETO DO ANTES E DO VIR A SER



Passado é esperança antes do nunca,
é o dado branco sem os pontos pretos,
é o pecado antes da desculpa,
é o esperar a sorte olhando um trevo.

Futuro é sumo dentro de uma fruta,
é vela de pavio nunca aceso,
é ter frio e a promessa de uma estufa,
é ansiedade desfeita no lampejo.

Passado é o grito antes do seu eco,
é o homem no útero materno,
é o vernáculo e a idéia antes da obra.

No futuro a nau sorri à terra nova,
a larva se transforma em borboleta,
um amor antigo jaz, outro entra em cena.


Rita Moutinho.

MUTAÇÃO



A sombra do passado
Vem me assombrar...
E a inquietude
Borbulha minha alma
Na iminência
Do tempo presente
Eu sei que preciso
Ou mudar...
Ou atuar eternamente
Para os que me assistem
Se agradem de mim!

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Maria S. Hion Novello.
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"SPLEEN" E CHARUTOS



I

Solidão
...

Nas nuvens cor de cinza do horizonte
A lua amarelada a face embuça;
Parece que tem frio, e no seu leito
Deitou, para dormir, a carapuça.
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Ergueu-se, vem da noite a vagabunda
Sem chale, sem camisa e sem mantilha,
Vem nua e bela procurar amantes;
É doida por amor da noite a filha.
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As nuvens são uns frades de joelhos,
Rezam adormecendo no oratório;
Todos têm o capuz e bons narizes
E parecem sonhar o refeitório.
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As árvores prateiam-se na praia,
Qual de uma fada os mágicos retiros...
Ó lua, as doces brisas que sussurram
Coam dos lábios teus como suspiros!
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Falando do coração que nota aérea
Deste céu, destas águas se desata?
Canta assim algum gênio adormecido
Das ondas mortas no lençol de prata?
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Minh'alma tenebrosa se entristece,
É muda como sala mortuária...
Deito-me só e triste, sem ter fome
Vendo na mesa a ceia solitária.
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Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem ceiar comigo!
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II
Meu Anjo
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Meu anjo tem o encanto, a maravilha,
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos armarinhos.
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Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto.
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.
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Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.
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Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!
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Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!
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Álvares de Azevedo.

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