15 de setembro de 2006

JOGUETE CONTRA O DESTINO



Não caibo dentro da norma.
Nem da norma de monstro.
Se o Monstro se mostra,
insurge-se contra ele o Médico.
E, se o Diabo funda a sua Igreja,
de pirraça a gentalha cumpre os Dez Mandamentos.
Uma face de mim,
se envergonha com o opróbrio.
Outra, regojiza-se com a infâmia.
Por uma lado, amo o anonimato.
Por outro, estimo a fama.
Se o famigerado em princípio é preclaro,
o formidável também é terrível.
E o casmurro, antes de ser tristonho, é teimoso;
quiçá teime em ser feliz.
Lábil e lúdica é a sina das palavras.
Lábil e lúdica é a sina do destino.
Embora eu não faça todas as coisas,
eu sinto tudo de todas as maneiras,
com o pesar da pluma
e as feições das máscaras.
Nada do que é me é alheio.
Entretando, tudo é tão estranho:
Desejo, nojo - antojo.
Estou grávido da própria morte.
Mas é mais cômodo ser cômico.
Entrego a tragédia do cosmos
nas mãos do Todo-Poderoso.


Mário Dirienzo.

DANÇA MACABRA



Como se via fora, e de nobre estaura,
Com um ramo de flor sobre o colo ofegante,
Tem ela esta indolência e esta desenvoltura
Duma mundana magra e de ar extravagante.

Baila. Cobre-lhe o corpo um traje exagerado,
Esquisito no corte e exótico na cor,
Que, em pregas, tomba sobre um pé magro encerrado
Num sapato que tem o encanto de uma flor.

Ricos fofos de renda, em torno das clavículas,
Na lascívia de um rio a lamber um rochedo,
Se esforçam em guardar, com manobras ridículas,
Os estigmas da morte, ocultos, em segredo.

Em seus olhos há o vácuo e trevas insondáveis;
O crânio liso e nu de flores enfeitado,
A custo se equilibra em vértebras friáveis!
- Ó vã fascinação do Nada ornamentado!

Os amantes da carne uma caricatura
Hão de dizer que tu és, não logrado entender
A elegância sem par de uma humana armadura
Que saber ostentar e que só eu sei ver!

- Tua horrenda figura a que veio: em ameaça
À bacanal da vida ou um velho e insidioso
Desejo mortifica ainda essa carcaça
A ponto de a arrastar ao túmulo do gozo?

Entre música e luz, certamente, querias
Afugentar de ti um pesadelo. E então,
Procuraste afogar, na torrente, de orgias,
O inferno em que chameja esse teu coração.

Profundo manancial de vícios e mazelas,
Que a dor universal dissemina e rejeita,
Por esse gradil de recurvas costelas
Uma víbora enorme e peçonhenta espreita!

Esforças-te debalde em disfarçar a fria
Ossatura na pompa esquisita de um manto,
Mas quantos saberão compreender-te a ironia,
Se, apenas, para um forte é que o horror tem encanto?

Do bárbaro do olhar, monstruosamente feio,
A vertigem te brota e os convivas prudentes
Jamais contemplarão sem náuseas e receio
O sorriso eternal dos seus trinta e dois dentes!

Entretanto, quem não abraçou nesta vida
Nunca um magro esqueleto? Onde existe o alento
Que, também, não exista uma ossada escondida?
De que vale o perfume? E que vale o ornamento?

Bailarina irreal, descarnada criatura,
A esses loucos diz: "Ó comparsas facetos!
Muito embora o perfume, o atavio, a pintura,
Trazeis a morte em vós , humildes esqueletos!

Antínoos sensuais, jovens de face glabra,
Que mascarais com luxo um cadáver poluído,
O turbilhão vital, numa dança macabra,
Vos leva de roldão para o Desconhecido!

Assim em toda a Terra, entre chufas e riso,
A humana turba agita-se em doidos esgares,
Sem ser, sobre a cabeça, a trombeta do Juízo
Sinistramente hiante, estrugindo nos ares...

No chão, no mar, no espaço - em toda parte em suma -
Sempre a Morte te espreita, ó pobre barro-humano,
E às vezes, como tu, de mirra se perfuma,
E mescla seu sarcasmo a teu delírio insano!" .


Charles Pierre Baudelaire.


A LUA NO CINEMA



A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!


Paulo Leminski.