31 de dezembro de 2006

O DESÍGNIO E EFEITO DAS AFLIÇÕES



"Por isso, não desanimamos; pelo contrário, mesmo que o nosso homem exterior se corrompa, contudo, o nosso homem interior se renova de dia em dia. Porque a nossa leve e momentânea tribulação produz para nós eterno peso de glória, acima de toda comparação, não atentando nós nas coisas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são temporais, e as que se não vêem são eternas¨.
2 CORÍNTIOS 4.16-18

O ÚLTIMO POEMA



Chegará o dia do último poema
E o último sairá para o tempo tranqüilo e natural,
Sem nenhuma melancolia, como se fosse o primeiro nascido
Do espírito inquieto.

Chegará o dia do último poema
E o último poema será simples e modesto
Como se fosse um dos muitos da longa série inútil.
No entanto, será o último,
Será o derradeiro,
A última canção.
Sobre a voz que se foi e cantou
Será o último som interrompido, subitamente,
Quando tudo precisa indicar a vinda de outros sons,
E que eles caminharam pela estrada
Como raparigas imaginárias enfeitadas de flores,
Formando a grande música.
Será o último poema e sobre a voz estrangulada
O mármore gracioso e resistente.
Será o último poema e ninguém perceberá
Que a morte está nele e o domina
Como se ele fosse uma rosa no seu último instante de plenitude,
Viva e perfeita,
Mas prestes a se desfazer no soluço final.
Será o último poema e ninguém sentirá
Que o silêncio absorverá para sempre a poesia poderosa,
Que o poeta está morto
E que esse poema é um poema
Nascido de uma força perdida,
A última lágrima indiferente que desceu de olhos sem vida,
Luz que veio caminhando pelo espaço, originária de uma fonte morta.

O último poema será um poema perdido entre muitos poemas
Como uma flor perdida, como um sorriso breve,
Como uma fisionomia desconhecida que um instante fixamos e que vai desaparecer
Para sempre na terra, na distância e na morte.


Augusto Frederico Schmidt.


ORAÇÃO DA NOITE



Senhor que estás no céu,
faz com que eu não me deite, à noite,
como um suicida,
e que eu não adormeça sempre com a alegria
e a esperança de morrer uma noite.

Afasta de mim os tristes sonhos,
fortifica-me contra a volúpia
da melancolia e do desespero.
Não me abandones, desamparado,
privado de razão,
e de vontade
aos caprichos da minha imaginação.

Dá-me um sono
opaco e negro, onde nada
da vida penetre,
mas que seja doce e leve.

Ajuda-me a tudo esquecer.
Porque o homem que tudo esqueceu
É feliz.



Augusto Frederico Schmidt.


TAVERNA



Bem sei que, olhando pra minha cara,
pra minha boca, triste e incoerente,
pros gestos vagos de sombria incerta
que hoje sou eu,
minha loucura se faz tão clara,
minha desgraça tão evidente,
minha alma toda tão descoberta,
que pensam: ¨Este, não bebeu...¨

Passei a noite, passei o dia
de cotovelos firmes na mesa,
de olhos sobre o vinho perdidos,
a testa pulsando na mão:
e muros de melancolia
subiam pela sala acesa,
inutilizando os gemidos,
mas quebrando-me o coração.

Deixei o copo no mesmo nível:
bebida imóvel, espelho atento,
onde - só eu - vi desabrochares,
rosto amargo de amor!
Vim da taverna ébrio de impossível,
pisando sonhos, beijando o vento,
falando às pedras, agarrando os ares...
- Oh! deixem-me ir para onde eu for! ...


Cecília Meireles.

A DIFERENÇA É QUE NÃO TEMOS OS ENDEREÇOS



A diferença é que não temos os endereços.
Pode ser que estejam até mais perto
esses nossos amigos mortos.
Pode ser que estejam nesta cidade, nesta rua,
nesta sala...
Mas não temos os endereços: essa é a diferença.

Não ouvimos mais suas vozes.
não recebemos mais suas cartas:
se ainda não nos esqueceram,
se ainda nos amam como outrora,
quem sabe? como o saberemos?

E quando sairmos agora do mundo,
virão, por acaso, ao nosso encontro,
como nos cais e aeroportos?
Estarão à nossa espera, abrirão os braços,
para nos receberem?

Ou teremos de procurá-los, melancolicamente,
cegos e suplicantes, como esses tristes mendigos
que batem palmas, que batem palmas
em cidades mal conhecidas
diante das grandes casas
de janelas e portas fechadas?


Cecília Meireles.


ATRAVESSANDO O PARQUE



Estão trabalhando no parque
onde o cheiro da morte é verde,
o da grama sendo cortada,
o dos talos sentindo sede;

pombos continuam a morrer,
sem uma pluma aparecer,
como se houvesse um cemitério
invisível, dentro dos ares,
que os apagasse (falo sério);

saindo do parque, a cidade
está em lágrimas, é tarde.


Alberto da Cunha Melo.

TONEL DO ÓDIO



O Ódio é o tonel das pálidas Denaides frias;
Por mais que da Vingança o braço rubro e forte
Derrame-lhe às entranhas ermas e sombrias
Baldes cheios de sangue e lágrimas da morte,

O Diabo lhe abre furos nunca imaginados,
Que verteriam séculos de esforço e suor,
Mesmo que à vida ela trouxesse os condenados
Para o corpo infligir-lhes castigo maior.

O Ódio é um ébrio perdido ao fundo da taverna,
Que sente sua sede emergir do licor
E ali multiplicar-se qual hidra de Lerna.

- Mas quem bebe feliz verá seu vencedor,
E ao Ódio resta apenas a amarga certeza
De saber que jamais dormirá sob a mesa.



Charles Baudelaire.


UMA GRAVURA FANTÁSTICA



Este espectro invulgar tem apenas por traje,
A ornar-lhe a fronte nua qual grotesco ultraje,
Um medonho diadema herdado ao carnaval.
Sem espora ou chicote, ele instiga o animal,
Como ele a um tempo apocalíptico e esquelético,
A espumar pelas ventas como um epiléptico.
Cavalgam ambos rumo às cúpulas do espaço,
Calcando o azul do céu com temerário passo.
O cavaleiro brande um sabre que resplende
Sobre as turbas sem nome que o corcel ofende,
E a sós percorre, como um rei que o lar visite,
O imenso e frio cemitério sem limite,
Onde repousa, à luz de um sol pálido e terno,
Quanto povo existiu, desde o antigo ao moderno.


Charles Baudelaire.


DOIS DEMÔNIOS



O demônio de dentro sofre
de insônia, dorme muito pouco,
para que nenhum dos cordéis
de tua alma faça-se solto,

mas se ele cochila uma hora,
assume o demônio de fora;

e assim, toda resistência,
em duas frentes, leva o tempo
inteiro de tua existência,

e rouba-te as horas de amar,
que dão ao santos seu altar.



Alberto da Cunha Melo.


TESTAMENTO



O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os...
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!



Manuel Bandeira.


POEMETO ERÓTICO





Teu corpo claro e perfeito,
– Teu corpo de maravilha,
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo, branco e macio,
É como um véu de noivado...

Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Quem em antigas se derrama...

Volúpia da água e da chama...

A todo o momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...



Manuel Bandeira.


HÁ HOMENS QUE COMEM E LIMPAM



Há homens que comem e limpam
o suor ao mesmo tempo.
Há homens que têm paz ao mastigar.
Há homens que transam, tombam no canto
e resmungam sonhando.
Há homens inflamáveis,
movidos a querosene e ódio.
Há pensamentos que a gente não esquece
e não recorda.
A fidelidade pode ser cansaço.


Fabrício Carpinejar.

PAIXÃO DE CRISTO



Apesar do vaso
que é branco,
de sua louça
que é fina,
lá estão no fundo,
majestáticas,
as que no plural
se convocam:
fezes.
Para que me insultem
basta um grama
de felicidade:
'baixe o tom de sua voz,
não acredite tanto
em seu poder'.
O martírio é incruento
mas a dor é a mesma.


Adélia Prado.