18 de dezembro de 2006

TUDO PERDI



Tudo perdi da infância
e já não posso mais
desmemoriar-me num grito.

A infância soterrei
no fundo das noites
e agora, espada invisível
me separa de tudo.

De mim recordo que exultava amando-te,
e eis-me perdido
no infinito das noites.

Um desespero que incessante aumenta
a vida não me é mais,
presa no fundo da garganta,
que uma rocha de gritos.


Giuseppe Ungaretti.

OS CANTOS DE MALDOROR - C4,E4



Estou sujo. Os piolhos me roem. Os porcos, quando me olham, vomitam. As crostas e as pústulas da lepra escamaram minha pele, coberta de pus amarelado. Não conheço a água dos rios, nem o orvalho das nuvens. Sobre minha nuca, como sobre um monte de esterco, cresce um enorme cogumelo, com seus pedúnculos umbelíferos. Sentado em um móvel informe, não movo meus membros há quatro séculos. Meus pés assentaram raízes no solo, e compõem, até meu ventre, uma espécie de vegetação vivaz, cheia de ignóbeis parasitas, que ainda não deriva da planta, e que já não é mais carne. Contudo, meu coração bate. Mas como poderia ele bater, se a podridão e as exalações do meu cadáver (não ouso dizer corpo) não o nutrissem abundantemente? Debaixo da minha axila esquerda, uma família de sapos fixou residência, e quando um deles se mexe, me faz cócegas. Cuidado para que não escape um, e não venha escavar, com sua boca, o interior de vossa orelha; seria capaz, em seguida, de penetrar em vosso cérebro. Debaixo da minha axila direita há um camaleão, que lhes move uma perpétua caçada, para não morrer de fome; é preciso que todos vivam. Mas, quando uma das partes desmancha completamente as artimanhas do outro, não encontram nada melhor para fazer, sem incomodar-se, que sugar a gordura delicada que recobre minhas costas: já me acostumei. Uma víbora malvada devorou minha vara, e tomou seu lugar; tornou-me eunuco, essa infame. Ó!se eu houvesse sido capaz de me defender com meus braços paralisados; mas creio que esses se transformaram em achas de lenha. Seja como for, importa constatar que o sangue não vem mais passear aí seu rubor. Dois pequenos ouriços, que não crescem mais, jogaram a um cão, que não os recusou, o interior dos meus testículos; a epiderme, cuidadosamente lavada, lhes serve de ninho. O ânus foi interceptado por um caranguejo; encorajado por minha inércia, toma conta da entrada com suas pinças, e me dói muito! Duas medusas atravessaram os mares, imediatamente atraídas por uma esperança que não foi traída. Olharam com atenção as duas partes carnudas que formavam o traseiro humano, e grudando-se a seu contorno convexo, esmagaram-na a tal ponto por uma pressão constante, que os dois pedaços de carne desapareceram, enquanto permanecem dois monstros saídos do reino da viscosidade, iguais nas cores, na forma e na ferocidade. Não falai da minha coluna vertebral, pois esta é uma espada. Sim, sim... eu não prestava atenção... vosso pedido é justo. Desejais saber, não é, como ela se encontra verticalmente implantado em meus rins. Até mesmo eu não me lembro mais com muita clareza; contudo, se me decidir a tomar por lembrança o que talvez não passe de um sonho, sabei que o homem, quando soube que eu havia feito a promessa de viver com a doença e a imobilidade até que houvesse derrotado o Criador, caminhou por trás de minhas costas, pé ante pé, mas não tão suavemente que eu não o ouvisse. Não percebi mais nada, durante um instante que não foi longo. Esse punhal agudo se enterrou, até o cabo, entre os dois ombros do touro das festas, e sua ossatura estremeceu, como em um terremoto. A lâmina adere com tamanha força ao corpo que ninguém, até hoje, conseguiu arrancá-la. Os atletas, os mecânicos, os filósofos, os médicos tentaram, cada um por sua vez, os mais diversos expedientes. Não sabiam que o mal praticado pelo homem não pode ser desfeito! Perdoei a profundidade da sua ignorância inata, e os cumprimentei com as pálpebras dos olhos. Viajante, quando passares por perto, não me dirige, suplico-te, a menor palavra de consolação; enfraquecerias minha coragem. Permite que eu aqueça minha tenacidade junto à chama do martírio voluntário. Vai-te... que eu não te inspire piedade alguma. O ódio é mais estranho do que pensas; sua conduta é inexplicável, como a aparência de coisa quebrada de um bastão enfiado n’água. Tal como me vês, ainda posso fazer expedições até as muralhas do céu, à frente de uma legião de assassinos, e voltar, retomando essa postura, para meditar novamente sobre os nobres projetos de vingança. Adeus, não te farei perder mais tempo; e para te instruir e preservar, reflete sobre o destino fatal que me conduziu à revolta, quando talvez houvesse nascido bom! Relatarás a teu filho o que viste; e, tomando-o pela mão, farás que admire a beleza das estrelas e as maravilhas do universo, o ninho do pintarroxo o os templos do Senhor. Tu te espantarás as vê-lo tão dócil diante dos conselhos da paternidade, e o recompensarás com um sorriso. Mas, quando ele souber que não está sendo observado, lança o olhar para ele, e o verá cuspir sua baba sobre a virtude; ele te enganou, esse que descende da raça humana, mas não te enganará mais: de agora em diante sabes o que virá a ser. Ó pai infortunado, prepara, para acompanhar os passos da tua velhice, o cadafalso indelével que cortará a cabeça de um criminoso precoce, e a dor que te mostrará o caminho que te conduz ao túmulo.
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(Isidore Ducasse)
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