27 de junho de 2006

O DESCARTE DE ARLEQUIM



A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá o teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade...


Manuel Bandeira.


GLÓRIA MORIBUNDA (fragmento)



Une fille de joie attendait surla borne. THÉOPH. GAUTIER

É uma visão medonha uma caveira?
Não tremas de pavor, ergue-a do lodo.
Foi a cabeça ardente de um poeta,
Outrora à sombra dos cabelos loiros,
Quando o reflexo do viver fogoso

Ali dentro animava o pensamento,
Esta fronte era bela. Aqui nas faces
Formosa palidez cobria o rosto...
Nessas órbitas?ocas, denegridas! ?
Como era puro seu olhar sombrio!

Agora tudo é cinza. Resta apenas
A caveira que a alma em si guardava,
Como a concha no mar encerra a pérola,
Como a caçoula a mirra incandescente.

Tu outrora talvez desses-lhe um beijo;
Por que repugnas levantá-la agora?
Olha-a comigo! Que espaçosa fronte!
Quanta vida ali dentro fermentava,
Como a seiva nos ramos do arvoredo!
E a sede em fogo das idéias vivas
Onde está? onde foi? Essa alma errante
Que um dia no viver passou cantando,
Como canta na treva um vagabundo,
Perdeu-se acaso no sombrio vento,
Como noturna lâmpada, apagou-se?
E a centelha da vida, o eletrismo
Que as fibras tremulantes agitava
Morreu para animar futuras vidas?


Álvares de Azevedo.

A CARNIÇA



Tu recordas, querida, aquilo que estou vendo
Ainda pela lembrança?
Na volta de uma estrada, um cadáver horrendo
Que sobre as pedras descansa.

As pernas para o ar, como uma fêmea ardente,
E que exale e que difunda
O veneno, ele expõe, cínico e indiferente,
Sua carne nauseabunda.

Nessa putrefacção, brilhante, o Sol luzia
Para cozê-la devagar,
A fim de devolver à natureza, um dia,
O que ela pôde juntar.

E contemplava o céu o fúnebre despojo
Abrir-se como uma flor.
Quem lhe estivesse ao pé vomitava de nojo
Ao lhe sentir o fedor.

Moscas vinham cheirar, nesse pútrido ventre,
As viscosas multidões
De vermes a vagar, negras e aquosas, entre
As fezes das podridões.

E tudo isto descia, e tudo isto subia,
E avançava borbulhando;
Dir-se-ia que um sopro ao corpo revivia,
Cheio, se multiplicando.

E esse pequeno mundo estranho produzia
Como os ventos um rumor,
Que lembra a água corrente, e lembra o grão que chia
Na joeira do semeador.

Sua forma esbateu-se em figura imprecisa
Como um debuxo que lança
No painel o pintor, e o esquece, e após precisa
Terminá-lo de lembrança.

Por detrás de um rochedo, olhos de cão faminto
Nos olhavam irritados,
Espreitando a ocasião de saciar o instinto
Em mais dois ou três bocados.

Mas um dia serás igual à sordideza
Dessa horrenda podridão,
Luz dos meus olhos, Sol da minha natureza,
Minha trágica paixão.

Ouve, serás assim, rainha das amadas,
Quando, sem vida, tu fores
Apodrecer teu corpo esbelto entre as ossadas,
Sob a erva e sob as flores.

Então, querida, diz aos vermes do montouro,
Que aos beijos te comerão,
Que eu guardei para mim o que havia de puro
Do teu ser em corrupção!


Charles Pierre Baudelaire.

MANIAS

O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada, -
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!



Cesário Verde.

A UM CARNEIRO MORTO



Misericordiosíssimo carneiro
Esquartejado, a maldição de Pio
Décimo caia em teu algoz sombrio
E em todo aquele que for seu herdeiro!

Maldito seja o mercador vadio
Que te vender as carnes por dinheiro,
Pois, tua lã aquece o mundo inteiro
E guarda as carnes dos que estão com frio!

Quando a faca rangeu no teu pescoço,
Ao monstro que espremeu teu sangue grosso
Teus olhos - fontes de perdão - perdoaram!

Oh! tu que no Perdão eu simbolizo,
Se fosses Deus, no Dia do Juízo,
Talvez perdoasses os que te mataram!


Augusto dos Anjos.