30 de novembro de 2006

O LETES



Vem ao meu peito, ó surda alma ferina,
Tigre adorado, de ares indolentes,
Quero os meus dedos mergulhar frementes
Na áspera lã de tua espessa crina;

Em tuas saias sepultar bem junto
De teu perfume a fronte dolorida,
E respirar, como uma flor ferida,
O suave odor de meu amor defunto.

Quero dormir o tempo que me sobre!
Num sono que ao da morte se confunde,
Que o meu carinho sem remorso inunde
Teu corpo luzidio como o cobre.

Para engolir-me a lágrima que escorre
O abismo de teu leito nada iguala;
O esquecimento por teus lábios fala
E a águas do Letes nos teus lábios corre.

O meu destino, agora meu delírio,
Hei de seguir como um predestinado;
Mártir submisso, ingênuo condenado,
Cujo fervor atiça o seu martírio,

Sugarei, afogando o ódio malsão,
Do mágico nepentes o conteúdo
Nos bicos desse colo pontiagudo,
Onde jamais pulsou um coração.


Charles Baudelaire.

MORBIDEZ



Encontrei-te outra vez

triste e sombria

correndo solitária e cruel

nos áridos campos do cinza.

Encontramo-nos na destimidez

dos teus passos gélidos

tingidos de fel

a confundirem-se na traça

com os anjos da noite.

Encontrei-te morbidez

uivando verdades e volúpia

ao ritmo irreprimível

das outonias rajadas de vento

a volatilizarem célula após célula.

Encontramo-nos sobre a palidez

tenebrosa e jovem

em boda só compatível

de celebração na crueldade

de teu frio tumular.

Encontrei-te morte

e não era ainda minha vez.




Beatriz Alcântara.