14 de junho de 2006

O ROCHEDO



Era uma vez os Deuses!
Sempre os Deuses!
Os Deuses de sempre...
E havia ainda o Crime, o Castigo, o Homem, a Montanha e o Rochedo. E eis que os Deuses, fartos da eterna juventude do tédio e não tendo nada que fazer (pois tudo já fora feito, desde o antes, durante e o depois), decidiram desfazer.

Começaram por apresentar o Crime ao Homem. Em pouco tempo, e talvez por influência de tão duvidosa companhia, o Homem aumentou consideravelmente a sua presunção de felicidade! Os Deuses, ao notarem que o Homem cumpria, até com excesso de zelo, a ventura que lhe fora determinada, se ofenderam. Convocaram então o Castigo e o encarregaram de punir o Homem. O Castigo (inventado pelo mais injusto do Deuses), que desde o seu pérfido nascimento nunca fizera nada que valesse a pena, viu nesse privilegiado momento a oportunidade (talvez única!) de justificar a sua parasitária existência. Lembrou-se de um pequeno rochedo que morava ali por perto. Tratava-se de um rochedozinho pobre, feio, triste; desprezível como qualquer pedra solitária. Rocordou ainda que este rochedo apaixonara-se pela Montanha, há muitos milhões de anos. Então, e a preço vil, contratou-o para afagar para sempre a pele de sua querida Montanha, sob a competente direção do infinito sofrimento do Homem! O rochedo, feliz da vida, aceitou imediatamente as cláusulas leoninas do contrato, pensando lá com as suas asperezas: "Agora ninguém mais me separará dela!"
Isto posto, esta máquina de cinco peças começou a funcionar. Escrevi cinco peças, mas deveria ter escrito seis: Acontece que os Deuses não costumam participar dos eventos que promovem...
A partir daí todos os dias o Homem tomava o rochedo em seus braços e o empurrava Montanha acima. Doía a pele da Montanha, doía a mão do Homem, doía a face do rochedo. O som da pedra rude no costado da Montanha parecia um soluço, uma queixa. Mas quem poderia afirmar que aquele som de rocha humanizada não fosse um gemido de amor?
Sempre que o rochedo chegava ao alto da Montanha, seu peso se tornava tão grande que o Homem não tinha outra alternativa senão separar-se dele. E então o rochedo rolava Montanha abaixo. Consta que, nesse momento, o gemido era ainda maior! E tudo tinha de recomeçar. Enquanto isso, o Castigo ia contabilizando, avara e mesquinhamente, em forma de lucro, o incontável número de vezes em que o processo se repetia.
Parece, porém, que um fato passava despercebido daqueles que estavam implicados nesse inominável trabalho: Cada vez que a operação se completava, o Homem ficava um pouco menor, a Montanha ficava um pouco mais plana, os gemidos ficavam mais suaves, quase suspiros. Corria até um vago temor que esses gemidos não mais se fizessem ouvir. Só o rochedo é que ficava cada vez maior, cada vez mais bonito, cada vez mais brilhante!
Um dia, depois de ter passado todo o tempo que será possível passar, o Homem, de tanto diminuir, desapareceu. A Montanha tornou-se resignadamente plana. O silêncio, que não fazia parte desta história, chegou expulsando os quase inaudíveis sussurros. O Castigo, já gasta sua última folha de anotações, e desgostoso com a monotonia de seu desserviço, deu suas obrigações por concluídas e recolheu-se ao seu jardim, onde começou a cultivar a tirania das rosas. O Crime, frustrado por não ter conseguido trair-se a si mesmo, saiu pelas estradas a cantar, pedagogicamente, a infinita rapsódia de suas virtudes. Consta que sem esses cantos pioneiros Homero nunca teria existido...
E o rochedo? Ah! Sim, o rochedo... O rochedo, de tanto ter sido trabalhado por todos os lados do Espaço, por todos os minutos do Tempo, por todas as coisas da Morte, por todos os nadas da Vida, tornou-se, simplesmente, perfeito!
Foi aí que em seu desespero ele bradou: Ó Deuses! O Homem conquistou a amizade do Crime. Vós o castigastes e para isso usastes a mim e a Montanha. Assim, o Homem me aperfeiçoou constantemente, à custa de si mesmo. A Montanha está agora deitada para sempre. Então, eu vos pergunto: que falta pratiquei para merecer a Perfeição?"
Nunca houve resposta.
Talvez os Deuses não hajam podido suportar a inesperada divindade do Rochedo. E embora ainda não saibam, morreram no exato momento em que aquela pergunta lhes foi feita...

Homero Frei.