19 de novembro de 2006

ACROBATA DA DOR



Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,

agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço. . .

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.


Cruz e Souza.

MINHA GRANDE TERNURA



Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.

Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de o ser.
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.

Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.

Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.

Minha grande ternura
Pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo.


Manuel Bandeira.

VOLÁTEIS



Anos andando no mato,
nunca vi um passarinho morto,
como vi um passarinho nato.

Onde acabam esses vôos?
Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?
São solúveis em água ou em vinho?

Quem sabe, uma doença dos olhos.
Ou serão eternos os passarinhos?


Paulo Leminski.

BANQUETE PARA UM FANTASMA



numa bandeja foi servida a hora
em um castiçal, meio tempo aceso

um sopro magro vinha porta fora

e porta adentro vinha um sopro obeso
na sala, ao canto, tinha um riso torto

em pé junto à porta um vulto ao revesso

todos falavam, ninguém se entendia
nas mãos um aceno em forma de enfeite

na mesa, à testa, um fantasma comia
cantava e sorria atento ao banquete


Majela Colares.

CENTAURO ESCARLATE



O teu centauro te espera,
monta em seu dorso
e vê o mundo pelos olhos da esfinge:
és o enigma, não o decifrador.

A gente se enche de calo,
a gente pensa que sabe,
a gente se desespera até,
mas não abre mão de estar aqui.

O teu centauro te espera
e o mundo é tudo o que a gente percebe:
é só sair por aí descobrindo
o que nunca vai ser teu.

E quando for noite alta
e os acordes de uma aquarela
luzirem dentro de teu espírito,
deixa o centauro que habita em ti
galopar, galopar, galopar
e transcender a ti e as tuas explicações.

Há de existir um lugar
onde os teus mistérios possam descansar.



José Inácio Vieira de Melo.

CÉRBERO



É, não vens mais aqui... Pois eu te espero,
Gele-me o frio inverno, o sol adusto
Dê-me a feição de um tronco, a rir, vetusto
- Meu amor a ulular... E é o teu Cérbero!


É, não vens mais aqui... E eu mais te quero,
Vago o vergel, todo o pomar venusto
E a cada fruto de ouro estendo o busto,
Estendo os braços, e o teu seio espero.


Mas como pesa esta lembrança... a volta
Da aléia em flor que em vão, toda transponho,
E onde te foste, e a cabeleira solta!

Vais corações rompendo em toda a parte!
Virás, um dia... E à porta do meu Sonho
Já Cérbero morreu, para agarrar-te.



Pedro Kilkerry.