17 de outubro de 2007

ORAÇÃO PELO POEMA
















I

Escrevo de cabeça baixa
por que levantá-la depois?
Não o faça para ser visto
pelos que passarem na estrada.

Viver na mesma posição
mas deixando a alma sair
pelos olhos e pela boca,
como água a jorrar de uma estátua.

Este é o tempo em que Deus regressa
pelos quatro cantos da casa.
Vem desenterrar o poema
do meu corpo e gritar comigo.

Recebe-o diante do espanto
dos amigos que não o vêem,
tenho gestos incompreensíveis
e digo coisas já remotas:

Senhor, protege meu poema
e obscurece com tua sombra
os versos mortos, as palavras
que sobram, o tempo perdido.



II

Senhor, dá-me a palavra brisa,
irmã das fontes, dá-me agora
qualquer palavra que suavize
a minha vida, para sempre.

Dá-me uma canção que me salve
no tempo em que as canções morreram,
para tocá-la no piano
velho, cada noite mais alto.

Cobre várias vezes com a gaze
de tuas nuvens o vocábulo
ferido (como eu) na cidade
dos cegos, pisado por eles.

Levanta as brancas persianas
sobre a manhã - que começa
quando ouvimos pronunciar
o nosso nome, uma palavra.

Dá-me novamente a esperança
de transmitir todas as coisas
novas, que a noite me disse
ou que teus anjos me disseram.


III

Quando pela noite repleta
de teus chamados, nas pequenas
vozes distingo tua voz
que me ensina a falar do tempo.

E certa noite me disseste
uma palavra que sufoca
todas as outras, mas não posso
pronunciá-la antes do sol,

antes que a vida amadureça
as esperas mais dolorosas,
antes que morram de vividas
as pequeninas locuções.

Seguro teu retrato: a túnica
inexistente já se move
ao vento do postal, com sombras.
Tua voz é mais verossímil,

surge como o vento noturno
que trouxe a página perdida,
e que me fez continuar
a luta, o poema parado.




IV

Talvez as palavras se esgotem
neste poema, e aqui terminem.
Mas tenho a mesa iluminada
ainda, não me abandonaste.

Estás tão perto que me assusto
ao tocar nas cortinas: todas
rudes e brancas como a túnica
que os pescadores te ofertaram.

Senhor, estou cansado, senta-te
aqui, é tua vez agora.
Vem terminar o doloroso
poema, que enfrenta as estrelas.

Faltam somente para o fim
duas estrofes corriqueiras,
e hás de encontrá-las para o filho
insone, operário três vezes.

Nada em troca receberás
a não ser um outro pedido
de palavras, de outras palavras:
matéria, prima do poema.


V

Deixaste-me um momento. Agora
ergo os braços para acender
velhas lanternas que não mostram
o perdido vocabulário.

Longe de ti o meu poema
vai esfriando como os rios
de outros países, vai freando
gelado, no meio da página.

Pergunto agora pelos ventos
arrogantes dentro da noite,
pergunto agora que umedeço
em vão o gesso do papel.

Sem ti, entrego-me de todo
às exigências do meu tempo,
e começo a estender a folha
vazia aos outros companheiros.

Quando decidires voltar
na alta madrugada, verás
o teu filho ainda parado
no último verso que ditaste.




VI

Tocam-me de repente o rosto
as lufadas de luz. Eu nada
vejo mas estou incluído
no tempo, na manhã que chega.

Voltaste como um grande amigo
e por trás de mim colocaste
as tuas mãos sobre os meus olhos,
mas não foste reconhecido.

Pouco depois, quando as palavras
fluíram fáceis, novamente,
eu compreendi que estavas perto
e meu poema foi crescendo.

Ó vento conterrâneo! ó núvem!
passai depressa para os outros
poetas, mais necessitados
e mais sozinhos do que eu.

Põe-se a meu lado quem defende
da malcriada ventania
o meu poema crepitando
como chama em cima da mesa.


VII

De novo mergulhei a pena
na água, deixaste-me de novo.
A cesta de papéis à espera
do poema que não nasceu.

É tarde para desmanchar
a pose e tirar a gravata,
tudo já foi fotografado
de muito perto, por teus anjos.

Cheio de fogo e petulância
assinei o poema. Nem
de leve toquei o teu nome,
Senhor, no teu ombro de névoa.

Saí de casa desviando
todas as brisas para mim,
e fechei a única janela
do companheiro sufocado.

Dentro das brisas de setembro
tua presença era demais,
e foi bom que me abandonasses
um pouco, antes que eu te perdesse.


VIII

Ó eterno regressar de Deus
sobre os seres noturnos, todos.
Troco de roupa e de linguagem
para receber-te de novo.

Ir e voltar de tantas luzes
matutinas, de grandes tédios
roendo, como cães danados,
homens acuados no tempo.

Verão e inverno revezados
sobre as cercas insuportáveis
que avistamos do mesmo ponto,
à mesma hora, há longas épocas.

O cansativo e apaixonante
viver, cruzes acetinadas.
Ó sonho-atleta que venceste
todas as lutas conhecidas.

Competição no grande céu
de nuvens e andorinhas: todos
se viraram para o poeta
vivo, mas ele te apontou.


X

Sei que falo destituído
de todas as conquistas do tempo,
ainda tenho as asperezas
de certas coisas intocadas.

Essas novas escavações
devem chegar até meu corpo.
Escuto apenas as pisadas
dos amigos na superfície.

Preciso ser tocado, ainda
que meu corpo de areia solta
seja comido pelos ventos
ao ficar em cima da terra.

Puseste minha voz sumida
numa sala subterrânea,
dá-me forças para cavar
por dentro e irromper num jardim,

ou a certeza de que serei
por um milagre descoberto,
quando os amigos resolverem
plantar aqui uma roseira.


XII

Se escuto apenas o rumor
da chuva  não está chovendo.
Só chove quando estou molhado
e a planície despovoada.

Então desenrola o poema
tépido, cobre-me com ele:
o cobertor impermeável
contra o tempo, tempos depois.

Já não podemos confiar
no sol, um crédito suspenso,
e perco todo o meu verão
conferindo meus agasalhos.

Chuvas de pedra, são teus anjos
nos baleando das sacadas.
Chuvas de pedra, são teus anjos
sublevados, quebrando as telhas.

Quero estar longe, muito longe
desse começo de revolta,
numa estrada onde lá em cima
não há céu  estrada do céu.



XIII

Por que levarei adiante
este poema ameaçado?
Por que levarei esta vida
tão ameaçada também?

Poesia, poema, por quê?
Disso tudo possuis, senhor,
a chave no bolso da túnica
ou deste a algum anjo a resposta?

Seminovas meditações
sobre a palavra. Nós falávamos
longamente de nossa angústia
e eu tentava falar mais alto.

Poemas ditos e no fim
fazíamos o mesmo trajeto.
Nossas mães e nossas irmãs
olhavam-nos: “tudo perdido”.

Quando as vozes ultrapassadas
falavam de tua existência,
nós escutávamos calados,
pensando em novas descobertas.





XIV

O poema ataca de notie
os seres desarmados. Com
requintes de perversidade,
ele aproveita a tua ausência.

Vem equipado, traz nos ombros
os instrumentos da tortura,
as palavras que não desistem
de entrar à força no meu sonho.

O teu ser é impronunciável
e estou cercado de palavras
que procuram, a todo custo,
passar à frente do teu nome.

A minha voz dentro da sombra
é revesada  escuto passos
e sei que algo me levará
daqui a pouco, não teus anjos.

Ainda é noite e sou jogado
às pedreiras do desencanto,
ao trabalho forçado, às grandes
injunções do tempo sem Deus.


XVI

Senhor, este poema sabe
o número certo de mortos:
acaba de ler os jornais
do dia, e não está contente.

Olha teus anjos, mas não perde
de vista as patrulhas que rondam
as alamedas do teu reino,
como disse, desencantado.

Entra furioso no templo
para pedir-te explicações,
e tocar os sinos mais altos
e provocar tua inocência.

Volta sem flores do mercado
(para não falar noutra coisa
que magoa a forma discreta
de acusar o tempo que passa).

Segue furtivo e camuflado
como um lagarto, pelas folhas:
Senhor, este poema sabe
de tudo, e não pode dizer.


XVIII

Agora mesmo perguntaram
porque eu, altas horas do Século,
tal como um cão retardatário,
venho arranhar a tua porta.

Acharam fora de propósito
a maneira como me arrosto
contra tua túnica, rasgando-a
cheio de furioso amor.

Não sabem que te peço a nova
beleza despreocupada,
antes a qual este meu poema
será simples mata-borrão.

Que busco pegar a palavra
entre muitos homens na estrada:
despi-la dentro do ataúde
e fecundá-la novamente.

E nem ao menos compreendem
minha devida gratidão
à grande voz que nomeou
antes de mim todas as coisas.


XIX

A manhã não deve surgir
antes de meu poema acabar,
antes de encontrar a palavra
certa, para o dia seguinte.

Este poema é a resposta
que pedi e nunca me deram,
é o outro braço que faltava
para agarrar minha esperança.

Egresso de uma vida comum
e aparentemente perdida,
soube atingir o ponto alto
(não muito alto) do que sou.

Escadas retorcidas, trechos
de desespero organizado
e previsões, as mais absurdas,
emergem salvas como solhas.

Que esta vida e minhas palavras
sejam pedra na superfície:
sejam flores, mas endureçam
na hora de serem arrancadas.


XXI

Somente uma tranqüila réstia
de teu vulto ainda consegue
tocar-me a vida neste instante,
e iluminar o meu poema.

E o que há de limpo, o que há de luz
(merecida, apesar de tudo)
entram pela telha quebrada
ou pela porta semi-aberta.

Uma réstia na minha face,
atuante, imperceptível,
dá-me por alguns momentos
grandes vantagens sobre o mundo.

Eu não preciso de teu sol
inteiro, sobre a minha casa,
basta que venhas clarear
por alguns instantes a página.

E levantarei nessa hora
a canção que todos disseram
estar perdida, e está apenas
emperrada dentro de mim.



XXII

A multidão que me jogou
nesta aldeia tão afastada
não sabia que aqui estavas
à minha espera, há tanto tempo.

Todas as coisas arrastadas
com sacrifício para o quarto:
desta noite não sairá
uma só palavra vazia.

Tudo que havia para ser
levado o vento já levou,
e só resta o que restará
por muitos anos sobre a Terra.

Cabe-me apenas a meu jeito
copiar tudo que encontrei
germinando em volta dos templos
mortos, à minha revelia.

Aceitar a bandeira branca
da página, lutar por ela,
e plantá-la nos pontos altos
de minha vida até aqui.


XXIII

Conheço minha letra, escrevo
para mim, escrevo à vontade.
Mas cada dia sou de mim
mesmo, um diferente leitor.

Palavras lidas e vividas,
as únicas pronunciadas,
e tudo seguirá o curso
imprevisível das crianças.

Minha voz é o vocabulário
pobre ou rico deste momento.
Só meus sonhos serão forçados
a ver muito além de mim.

Mas tudo cresce sob a tua
luminosa supervisão.
Cabes em todos os poemas
dos três tempos imaginados.

Novas idéias, novas formas
por todo lado me comprimem:
mas eu defendo minha dor
e saio vivo da cidade.



XXIV

De repente, surge a vontade
de ficar nesta rua clara,
e comungar as alegrias
que sobem, bolas coloridas.

É a festa da grande estação
explodida em setembro, quando
todos se dirigem à praia
e me acenam dos caminhões.

Meu verso curto é pequenina
trena medindo o horizonte,
e é cansativo colocá-lo
tantas vezes na superfície.

Ó semicírculo do mar,
arco voltaico do verão,
não saberei ainda o que
falta, neste bojo de luz.

Sei tão somente retirar
do bolso o bloco de papel,
e anotar com as últimas tintas
do teu sol o sono do tempo.


XXV

Como um vento muito pesado,
cheio de lágrimas e cinzas,
o poema vai saqueando
a paz, o campo de algodão.

Mas não sabia que este mundo
precisasse tanto de música,
e que voltasse a ser um disco,
agora um disco musical.

Estou liberto para ser
devorado pela palavra.
Que houve contigo que me deixas
esquecer-te rapidamente?

Não tarda que eu tome o partido
do companheiro descuidado,
que julga poder enfrentar
sozinho um poema no mundo.

Daqui a pouco sairei
empurrando minhas palavras:
animais velhos, que só andam
quando sentem tua presença.


XXVII

Sob a chuva de outra estação
estas mangueiras não florescem:
lenta e definitivamente
me levantas, Senhor do Tempo.

Crescerão apenas as frutas
que o ramo triste suportar.
Todas as demais cairão
verdes, na pocilga assanhada.

Vamos suportar a demora
de Deus, a Poesia: longa
espera, longa paciência
ante os olhos que tudo viram.

Não tocarei as campainhas
de prata, mas com meus poemas
te alcançarei, Forma Azulada,
quando chegar a grande época.

Nem amaldiçoarei os pássaros
de minha espécie (não teus anjos),
mas aprenderão a cantar
com humildade os supremos cantos.


XXIX

O teu filho distanciado
da própria época não sabe
se é ontem ou se é amanhã,
qual o tempo que é, e que perde.

Julga às vezes pronunciar
a oração que foi omitida.
Mas desde quando o berro humano
te chama, entre pilhas enormes?

A Torre de Babel, de livros,
precipitada sobre a úmida
terra dos grandes alagados,
onde os homens baixo morreram.

Meu desespero submisso
parte a coleira de repente:
Dá-me a força de dominá-lo
ainda, pela última vez.

É o dedo inútil me acusando
diante de ti, que me conheces.
Pobre Terra, forca florida,
razão de ser e de chorar.


XXVI

A cem quilômetros por hora,
solto a direção do automóvel,
para escrever alguma coisa
mais urgente que minha vida.

Devo portanto utilizar
o vocabulário econômico
do Século: é proibido
amar, fumar, pisar na grama.

Mas gostaria que restasse
algum tempo para dizer
no poema as palavras súbitas
de recompensa e remissão.

Ó meu Deus, eu quero escrever
a minha vida, não teu Céu.
Eu estou só e enlouquecido
como as ovelhas mais longínquas.

Dá pelo menos a esperança
de terminar o doloroso
poema. Dá isso a teu filho,
caído, e coberto de sal.


XXVIII

Na vigésima oitava parte
de meu poema estou perdido:
velhas palavras, como dentes,
apodrecem na minha boca.

Sabes de cor as pretensões
impublicáveis de teu filho:
o original que tens na mão
é cópia de um rebanho inteiro.

Aos gritos, mas cheio de amor
apesar de tudo regressas
com teus mapas acompanhados
de asas do último modelo.

E me apronto para escrever
como se fosse viajar
à noite, com tua lanterna
incidindo sobre meu sonho.

Tua luz vai forrando tudo:
cai como a chuva e vai tornando
navegável, por muito tempo,
este meu rio pequenino.


XXX

Senhor, nesta manhã de outubro,
ainda com o jeito de quem ia
reiniciar longa viagem,
meu poema chegou ao fim.

Agora todo meu trabalho
é procurar uma palavra
que te agradeça humildemente
todas as outras que me deste.

Entretanto, nem mesmo isso,
posso sozinho conseguir:
Dá-me, Senhor, essa palavra,
antes que chegue o último verso.

Que ela se espalhe como as brisas
dentro das minas, de repente,
e una-se sólida na hora
em que apertar a tua mão.

Quero morrer, quero alcançá-la,
e já começo a persegui-la
como se fosse uma serpente
que fugisse com minha morte.



Alberto da Cunha Melo.