2 de dezembro de 2006

DOMÍNIOS



Não sabes onde estou.

Vivo nos temores da alma.
Disfarço-me
No calafrio que te enlaça.
Escondo-me
Nas engrenagens da angústia.
Não existo,
Aguardo que me inventes.

Vício,
Sou tua consciência ausente
- Síndrome de abstinência,
Desvario.

No labirinto de espelhos
Em que me procuras

Sou o prazer que sorves
Em cálice diferente.

Desconforto que perturba,
Ameaça latente,
Ainda assim me necessitas:

Cura,
Mão segura.

Espio
Pelas frestas da culpa
E te possuo
Pelo talho da dor.
No teu vazio, entretanto, sou guia
E protetor.

Não sabes se sou início
Ou fim,
Calor de ninho
Ou frio abraço.

Respiras quando te sufoco.



Jaime Cardoso.


NO PARAISO



Um dia, São Barnaby, que era um cachorro,
com rabo e tudo, levantou-se de seu trono celeste e
pôs-se a latir.

Os outros santos nada compreenderam.
São Pedro chacoalhou suas chaves e São Tomé duvidou.

Barnaby só abanava o rabo e continuava a latir,
muito contente.

Cristo, que estava passeando pelo campo
colhendo lírios para a Virgem Maria,
ouviu o apelo, abandonou as flores
e foi olhar o que estava se passando.

Quando viu Barnaby, Sua face iluminou-se de
alegria e Seus olhos encheram-se de lágrimas.

- Enfim um santo! Disse, e pondo a mão no
bolso da túnica, dela tirou um enorme osso.

São Barnaby pegou-o e foi roê-lo, quieto, em
seu canto.



Roberto Marinho de Azevedo.

MESTRE



Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstrata e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.
Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Por que é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.


Álvaro de Campos.