24 de julho de 2009

EUTANÁSIA



Ergue-te daí, velho! ergue essa fronte onde o passado afundou suas rugas como o vendaval no Oceano, onde a morte assombrou sua palidez como na face do cadáver, onde o simoun do tempo ressicou os anéis louros do mancebo nas cãs alvacentas de ancião?
Por que tão lívido, ó monge taciturno, debruças a cabeça macilenta no peito que é murcho, onde mal bate o coração sobre a cogula negra do asceta?
Escuta: a lua ergueu-se hoje mais prateada nos céus cor-de-rosa do verão, as montanhas se azulam no crepuscular da tarde e o mar cintila seu manto azul palhetado de aljôfares. A hora da tarde é bela, quem aí na vida lhe não sagrou uma lágrima de saudade?
Tens os olhares turvos, luzem-te baços os olhos negros nas pálpebras roxas e o beijo frio da doença te azulou nos lábios a tinta do moribundo. E por que te abismas em fantasias profundas, sentado à borda de um fosso aberto, sentado na pedra de um túmulo?
Por que pensá-la... a noite dos mortos, fria e trevosa como os ventos de inverno? Por que antes não banhas tua fronte nas virações da infância, nos sonhos de moço? Sob essa estamenha não arfa um coração que palpitara outrora por uns olhos gázeos de mulher?
Sonha!... sonha antes no passado, no passado belo e doirado em seu dossel de escarlate, em seus mares azuis, em suas luas límpidas e suas estrelas românticas.
O velho ergueu a cabeça. Era uma fronte larga e calva, umas faces contraídas e amarelentas, uns lábios secos, gretados, em que sobreaguava amargo sorriso, uns olhares onde a febre tresnoitava suas insônias...
E quem to disse — que a morte é a noite escura e fria, o leito de terra úmida, a podridão e o lodo? Quem to disse — que a morte não era mais bela que as flores sem cheiro da infância, que os perfumes peregrinos e sem flores da adolescência? Quem to disse — que a vida não é uma mentira? — que a morte não é o leito das trêmulas venturas?


Álvares de Azevedo.

O RISO



"Ri, coração, tristíssimo palhaço"
Cruz E Souza



O Riso - o voltairesco clown - quem mede-o?!
- Ele, que ao frio alvor da Mágoa Humana,
Na Via-Láctea fria do Nirvana,
Alenta a Vida que tombou no Tédio!

Que à Dor se prende, e a todo o seu assédio,
E ergue à sombra da dor a que ser irmana
Lauréis em sangue de volúpia insana,
Clarões de sonho em nimbos de epicédio!

Bendito sejas, Riso, clown da Sorte
- Fogo sagrado nos festins da Morte,
- Eterno fogo, saturnal do Inferno!

Eu te bendigo! No mundano cúmulo
És a Ironia que tombou no túmulo
Nas sombras mortas dum desgosto eterno!


Augusto dos Anjos.

O IRREMEDIÁVEL



I

Uma idéia, uma Forma, um Ser
Vindo do azul e arremessado
No Estige plúmbeo e enlodaçado
Que o olho do Céu não pode ver;

Um Anjo, viajante imprudente
Que ousou amar o que é disforme
Dentro de um pesadelo enorme
A debater-se na corrente.

E a lutar, angústias sombrias!
Contra o refluxo mais feroz,
Que como um louco ruge a sós
E faz na treva acrobacias;

Um prisioneiro do bruxedo
Em suas frívolas manobras
Para evitar répteis e cobras,
Tateando a lâmpada e o segredo;

Um réu a descer sem lanterna,
Rente a um abismo cujo odor
Trai a fundura e o frio horror
De uma oscilante escada eterna,

Onde velam monstros horríveis
Cujos fosfóreos olhos fazem
Mais escura a noite em que jazem
E onde eles só ardem visíveis;

Um barco no pólo insulado,
Como num laço de cristal,
Buscando por que onda fatal
Foi neste cárcere atirado;

- Claros emblemas, traços reais
De uma fortuna atroz e vã,
Como a dizer-nos que Satã
Faz sempre bem tudo o que faz!


II

Conversa a dois, clara e sombria,
Espelho que a alma em si procura!
Fonte do Ser, límpida e impura,
Onde pulsa uma estrela fria,

Farol irônico, infernal,
Archote aceso a Satanás,
Consolo e glórias sem iguais
- A consciência dentro do Mal!


Charles Baudelaire.

POEMAS MALDITOS, GOZOSOS E DEVOTOS - XIX



Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.


Hilda Hislt.