25 de dezembro de 2006

DESENCANTO



















Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca,
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.

- Eu faço versos como quem morre.


Manuel Bandeira.

POÊMIO



Poêmio
sou eu
um poêmio
que foge se o sol nasceu


que tem várias paixões
mas nenhuma namorada
que é amigo das ilusões
e dorme com a tristeza
agarrada.


Poêmio
e toda sua papelada
o poêmio
que sem ela não é nada


que trata cada emoção
como sua afilhada
e cria seu coração
com as dores que tomou
das pancadas



Rodrigo Guidi Peplau.


O SERPENTÁRIO E SUAS RAMIFICAÇÕES



A cidade e seu esqueleto múltiplo e inevitável, seus animais incendiados e turbilhões de fomes sem fim. Dentro dela, o grande estômago absorvendo todas as contemplações. Vitrais pulverizados envolvem os grandes prédios, a magia coloca-se ao alcance de todos sob forma de um corrimão que aponta para a morte da Perspectiva. Foram setenta vidas, talvez mais, contidas no espaço de alguns dias, límpidos, convergentes, inevitáveis, sulcados pela proximidade dos ciclones, vivência do grande seio plástico que abriga os desejos da alma, das cordas tensas do violino; setenta vidas e depois disso a sobrevivência. Todavia o esqueleto mais desidratado do que antes, a cavidade dos olhos, o crânio abandonado na mata sem metamorfoses. É preciso atapetar os corredores com lâminas a cada nova aproximação do ser amado, contruir trilhas de sangue definitivo, única homenagem possível, antena, precipitação, anátema, presença, rastro fixo. A cidade, suas várias camadas e esqueletos, sua pulsação assustadora; sobre ela, a chuva de horóscopos que se precipitam a cada novo encontro. Torna-se necessário escolher as palavras incantatórias, abrindo novos espaços de magia (penetração, vértebra, sucção?). Tudo, porém, não passa de mais uma incorporação. Reconstruo-me, prossigo no roteiro dos sabath. Busco as clareiras deixadas pelo cerimonial. Máscaras de alabastro com línguas de gelo precipitam-se ainda no quarto, a partir de determinados pontos, lentas e solenes como se estivessem infladas de hidrogênio.
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POEMA DO ESPÍRITO E DO VINHO



Que o meu espírito amadureça,
Que o meu espírito adquira a posse
Das suas próprias substâncias,
Das substâncias que estão nele prisioneiras e desconhecidas.

Que o meu espírito se obscureça,
Que meu espírito se estenda
No fundo do escuro
E cresça em silêncio
E avance no desconhecido.

Que o meu espírito seja castigado
Como as uvas e pisado no escuro
Como as uvas, que vão dar vinho.
Como as uvas que vão se transfigurar em vinho,
Que se vão realizar no vinho.

Que o meu espírito tenha o destino da uva
Que não apodreça jamais,
E que atinge ao fundo de seu destino,
E que se transforma na sua essência.

Que o meu espírito não seja corrompido
Pelas luzes do mundo,
Pela sedução das paisagens,
Pela própria poesia,
Que o meu espírito não seja corrompido.

Que o meu espírito não seja desviado
Do seu caminho e do seu destino,
Da sua humilde grandeza,
Da sua grandeza sem nome,
Pelo amor do mundo.

Que o meu espírito não seja enganado
Pela música, pela música terrível,
Que o meu espírito não se transforme em música.
Não se disperse na música, no sortilégio da música.
Salvai meu espírito da música, meu Deus!

Que meu espírito se obscureça
E que possa descer ao seu próprio mistério
E conhecer as suas fronteiras
E se iluminar no coração da noite,
Nas trevas noturnas!

Que o meu espírito não se perca,
Antes conheça o humilde destino das uvas,
Que se transfiguram e realizam
No destino comum do vinho,
Na obscuridade do vinho,
Na despersonalização do vinho,
Na riqueza simples do vinho,
No mistério do vinho,
Que é a própria essência do espírito
Que é o próprio espírito
Que é o sangue,
O sinal do sangue,
O espelho do sangue.

Que o meu espírito realize o destino obscuro e glorioso
Da uva que se não perdeu,
E que é uma parte do vinho,
Indistinta e anônima,
E que sendo uma parte do vinho
É parte também do próprio espírito!


Augusto Frederico Schmidt.