26 de outubro de 2008

QUINZE DIAS



Quinze dias ainda e mais de seis semanas
já se foram! No ror das angústias humanas,
a angústia mais cruel é viver separado!

Trocam-se as expressões de um amor dedicado,
sempre evocando o olhar, os gestos e a voz pura
daquela, cujo amor faz a nossa ventura.
Fica-se a conversar com o espírito da ausente;
mas tudo o que se pensa e tudo o que se sente,
e o que se fala à ausente, enfim, tudo, persiste
num tom de palidez imutável e triste.

Oh! a ausência fatal! a suprema desdita!
E a gente ver consolo em uma frase escrita...
Ir buscar, no infinito horror do pensamento,
com que vos levantar, sonhos, do abatimento,
porém, nada trazer que a amargo não resume!
E depois, como um frio e penetrante gume,
sulcando mais veloz que uma bala violenta,
ou que as aves cortando um marouço em tormenta,
e trazendo um veneno à ponta de uma lança,
eis que o peito nos flecha a horrível Desconfiança,
arrojada por uma estúpida Incerteza!

Não é isso mesmo? Enquanto eu, apoiado à mesa,
vou lendo a sua carta (e o pranto já começa),
doce carta em que vem uma doce promessa,
ela não estará noutras cousas pensando?
Quem sabe? Enquanto eu vou neste exílio rolando,
como um rio tristonho e de margem sombria,
o seu lábio, talvez, inocente sorria?
Talvez ela me esqueça ou viva mais contente?

E eu a carta reli, melancolicamente.


Paul Verlaine.

IMORTALIDADE



A vontade de ser forte
faz as pessoas correrem
sobre areias que ardem,
e altos copos de leite
e sanduíches de três andares
são comidos pelas bocas
mais pesquisadas do século,
bocas de homens que podem
ser maravilhosamente triturados
pelas carretas Scânias
pois seus nomes serão
descobertos pelos peritos
da Medicina Legal.


Alberto da Cunha Melo.

HOMENAGEN



Silêncio de um tecido em seda cinerário
Mais que uma só dobra pode desdobrar
Sobre o móvel que a queda do grande pilar
Derroca com a memória em estado precário.

O nosso antigo embate triunfal do glossário
Em cifra, hieróglifos de que o milhar
Se ergue a ressoar com a asa um fremir familiar!
Guardem-no, para mim, melhor, em um armário.

Do ridente fragor original odiado
Por entre as claridades, mestras viu-se alçado
Até um adro nascido para o simulacro,

Trompas fortes de baço ouro sobre velinos,
Richard Wagner, o deus, a irradiar ritual sacro
Que a tinta mal cala em soluços sibilinos.


Stéphane Mallarmé.

RIM BELO RUMO À VIRILHA*



Rim belo rumo à virilha escapa,
foge com a intenção de perfurar sentinas
ou de polir caninos entediados
na lenta escritura do deserto.

Rim belo rumo à virilha vocifera,
desatendendo sermões onde soam
os disparos da louca virgem,
seus gemidos de menina, suas lágrimas de cadela.

Rim belo rumo à virilha se incendeia,
descreve os suspiros da infiel abissínia
Seu peito atrai a pontaria dos dados.
Com saliva de ovelhas sua sede não se alivia.

Rim belo rumo à virilha se desliza,
cuspe os monarcas ladrões de fuzis,
maldiz as horrendas mães crepusculares,
o ouro na cintura o torna navegante.

Rim belo rumo à virilha manca,
nu, boquiaberto, sonhando com palácios azuis.
O tabaco do diabo transforma os relógios.
A pólvora em sua boca é um beijo sem lábios.

Rim belo rumo à virilha entardece.
Os pesadelos se disfarçam de cerdos insolados.
Saltam grãos de areia nas turbinas.
Quer vender sua alma, apodrecem seus dentes.

Rim belo rumo à virilha fecha os olhos.
Brisa de bananais refresca seu joelho.
A noite procura um farol onde cresça o impuro.
Sua cabeça raspada se parece com o destino.


* Jogo de palavras rein beau (rim belo), vers l'aine (rumo à virilha) que se pronuncia de igual maneira que Rimbaud-Verlaine.

Francisco Hernández.

O SÁBIO LOUCO



O sábio louco ia arrumando pacientemente
os pedaços de corpos humanos que caíam
que caíam como chuva
que vinham nas asas das abelhas
e nos sinais dos telégrafos Morse.

Depois da beira do abismo
um a um os corpos iam se despencando
assim mesmo de braços cruzados
atropelando no caminho
os automóveis e as almas penadas.


João Cabral de Melo Neto.

DOR ANTIGA



Sobre soluços sulco a dor antiga
como a noite afagando-me os cabelos
de escuridão, com sua mão amiga.
Fico, memória em água, a escorrê-los.

Um arrepio de passado ou medo
rasga-me a pele entre tristeza e espanto.
Deixo que o frio que me queima os dedos
morra no corpo saciado, enquanto

uma lágrima escorre para dentro,
desliza, cai e se evapora estéril.
Nem o silêncio se ouve por lamento.

Frágeis soluços desta dor antiga
estrangulo-os na noite que vem fértil
afagar-me com sua mão amiga.


José Augusto Seabra.

ALÉM



Alfim! Vais repousar, corpo meu tão franzino,
Escudo, roto já, pelos gládios da Sorte;
A decomposição completa o teu destino,
As atrações do Além levam-me além da morte.

Para o Azul, para o Azul!... Vou perlustrar espaços,
Alma, - de sol em sol, - filtro que o corpo encerra...
Melhor fora, talvez, a noite de teus braços,
Meu amor; bem melhor! nos presídios da Terra.
Exílios! De tua alma a minha alma se ausenta,
Soluças! Nosso adeus é agonia lenta,
A Quimera a morrer nos braços de um titã...

Ficas em teu solar, sigo para o Mistério...
Quando seremos - LÁ! - no infinito sidéreo,
Almas nupciais na radiosa manhâ?


Dario Velozo.

A ETERNA QUESTÃO



- "Bendita a minha dor, o amigo sofrimento
Que me livrou de mim, de ossadas e de lousas.
Pela espiral da Fé, suba-me o Sentimento,
E a Razão não se atenha ao limite das Cousas.

Irmão Asno, terás alegria e sustento,
Como os têm na existência astros e mariposas,
Por que guardes em ti liberto o Pensamento,
E asas possam nascer aos pés em que repousas.

Quando unidos, um dia, a minha alma exilada
E o corpo material - viva lâmpada de oiro -
Dos justos e de Deus chegarem à morada:
Há de ir o Sentimento esperar-me à soleira,
E a Razão rolará, desfeita, ao sorvedouro,
Poeira que ficou do meu corpo na poeira!"


Lira franciscana (1921)
Durval de Morais.

QUARTEIRÃO



Lhano um homem
Entranhável em faca
Suor lhe cabia inteiro
O chão era um homem
A corroer ranhuras
Pó feito em menos
Pó em peças velhas
O encaixar como não
Sete ônibus em ponto
Retidos em quadrado de não
O que não acima de tudo
O córtex do mendigo
Cada pedaço de papelão.


Matias Mariani.